Reivindicado o objetivo da construção de uma sociedade cujo homem não seja o lobo do próprio homem, não há como pensar seriamente na conquista desse objetivo sem a elaboração de uma estratégia. E a estratégia não se realiza sem a combinação de uma série de táticas. São essas questões que ocupam ao longo das décadas o debate entre reformistas e revolucionários.
Sempre tensionado por esse conflito, o PT não conseguiu resolver corretamente essas questões do ponto de vista da revolução. A posição reformista, majoritária no núcleo de direção partidária, acabou se impondo com cada vez mais força. De partido da classe trabalhadora com forte influência política, teórica, cultural e socialista, converteu-se num partido da ordem, defensor do capitalismo. Cada vez mais abertamente reformista, terminou defendendo o reformismo sem reformas. Foi a experiência de um projeto que se converteu em seu contrário.
Pretender esgotar a maneira como se desenvolveu esse processo seria muita pretensão. Há razões que, de qualquer forma, saltam à vista. As bases objetivas dessas transformações podem ser encontradas no longo refluxo dos anos 90, na ascensão do neoliberalismo, com a reestruturação produtiva, debilitamento do movimento operário industrial no Brasil, tudo isso na esteira da queda do muro de Berlim e na quebra das esperanças de milhões de pessoas no mundo todo, na perspectiva de superação do capitalismo. Tudo isso pesou fundo. São razões objetivas, porém não explicam tudo. O PT teve uma base teórica equivocada num ponto pouco discutido, e que deve ser encarado para que se extraiam conclusões de uma experiência que não se pode negar como repleta de lições. Vejamos passo a passo.
O PT partiu de uma definição certa: a importância das eleições no Brasil desde sua fundação até os dias atuais. Em particular, desde 1989 a disputa presidencial tem sido, aos olhos do movimento de massas, o momento mais importante – a rigor, apenas nesses períodos isso ocorreu na história recente do país – de disputa em que a questão do poder está colocada. O PT adotou as eleições como prioridade de sua atuação. Mas dessa decisão resolveu mal um problema determinante: a relação entre as eleições e a insurreição ou a força física das classes em confronto.
Se no início o PT pôde realizar a combinação entre os movimentos sociais e a participação eleitoral, onde então esteve o equívoco político e teórico que permitiu mudanças tão bruscas em relativamente tão pouco tempo? Há alguma relação entre as formulações históricas do PT e sua política após assumir o governo? Seguindo na mesma pista, visualiza-se um elemento de continuidade entre a origem do PT e seu curso atual, mostrando a evolução do partido. Sua ruptura com o seu passado, assim, encontraria uma explicação teórica num ponto de continuidade para que o partido esteja atravessando o rubicão, para usar a mesma expressão de Lênin referindo-se ao dirigente alemão Karl Kautsky. Sua base também está na vacilação acerca da natureza do Estado, vacilação presente desde o início na vida do PT.
Já no manifesto de fundação do PT, de fevereiro de 1980, afirmava-se que “o país só será efetivamente independente quando o Estado for dirigido pelas massas trabalhadoras. É preciso que o Estado se torne a expressão da sociedade, o que só será possível quando se criarem as condições de livre intervenção dos trabalhadores nas decisões de seus rumos. Por isso, o PT pretende chegar ao governo e à direção do Estado para realizar uma política democrática…”
Parece uma questão menor, sem importância, mas não é. Sobre essa definição está a base da confusão, ou melhor, do “desvio” que já embutia uma acomodação do PT no regime político democrático-burguês. Quer dizer, o objetivo do partido foi desde o início a mudança do Estado, não sua destruição, como Marx, Engels e Lênin definiam a tarefa estratégica dos revolucionários. Ficava evidente que o partido adotava uma estratégia que não percebia o Estado como expressão da sociedade na qual a burguesia é a classe dominante, de tal forma que a derrota desse Estado, avalista e garantia do domínio burguês, era necessário para derrotar a dominação de classe. E para mudar o Estado, a utilização da cédula eleitoral pode ser suficiente.
Mesmo no V Encontro Nacional do PT realizado em 1987, momento em que teoricamente as posições partidárias estiveram mais próximas de uma estratégia socialista, a confusão também esteve evidenciada. Na análise da correlação de forças entre as classes, as teses aprovadas sustentavam que não existia nenhuma possibilidade de uma crise revolucionária no país, descartando, portanto, a luta pelo poder dos trabalhadores como tarefa do período. Contraditoriamente, as teses assumiam a possibilidade do PT chegar ao governo pela via eleitoral e, desde o governo, aplicar seu programa de ruptura com o capitalismo. Do ponto de vista político, isso foi a essência do que mais tarde ficou conhecido como programa democrático e popular.
Assim, o partido assumia como possível a aplicação de um programa de ruptura com o capitalismo aplicado por um governo eleito nos limites do regime democrático burguês e descartando, apesar disso, a eclosão de uma crise revolucionária. A hipótese de vitória eleitoral de Lula de fato esteve colocada em 1989, e o programa continha medidas de ruptura com o capitalismo dependente e subdesenvolvido. Mas tal hipótese não implicaria, necessariamente, na tentativa de aplicar tal programa, porque não estava garantido que uma vitória de Lula significaria de fato a aplicação do programa de ruptura. O compromisso de Lula nunca foi seguro. Em segundo lugar, caso Lula tratasse de aplicar o programa petista de 1987, ou mesmo o apresentado na campanha de 1989, as classes dominantes renunciariam o terreno legal, e a arma da disputa entre as classes estaria distante de resumir-se à utilização da cédula eleitoral. Estaríamos diante da realização da hipótese tática da II Internacional, avalizada por Engels, antes do giro do oportunista.
Logo, ou a perspectiva da crise revolucionária e da luta revolucionária pelo poder estaria colocada como tarefa presente, mesmo que fosse logo após as eleições, com a burguesia rompendo sua própria legalidade, ou o programa do V Encontro não sairia do papel, do terreno das intenções declaradas nos debates partidários. Em ambos os casos, estaria confirmada a posição marxista acerca da impossibilidade de uma transformação radical da sociedade sem o enfrentamento violento com as classes dominantes, sem o enfrentamento contra o Estado burguês e, portanto, sem situação ou crise revolucionária, por mais que as eleições pudessem jogar um papel de primeira ordem na tática da disputa. Dessa armação contraditória – impossibilidade de crise revolucionária e a possibilidade de aplicação de um programa de ruptura, anticapitalista, pela via eleitoral -, fortaleceram-se as ilusões constitucionais, a idéia de viabilidade de mudanças profundas com a mera vitória eleitoral.
No caso concreto, a maioria da direção do PT, ao defender a estratégia de mudar o Estado, não de derrotá-lo, acabou mantendo-se nos limites da ordem capitalista. Vendo as questões mais de perto, cabe ver o que Lukács dizia sobre esse tema. “A grande diferença entre marxistas revolucionários e oportunistas pseudomarxistas, é que os primeiros consideram o Estado capitalista exclusivamente como fator de poder contra o qual há que mobilizar a força do proletariado organizado, ao passo que os segundos concebem o Estado como uma instituição acima das classes, cuja conquista é o objetivo da luta de classes do proletariado e da burguesia. Mas ao conceber o Estado como objetivo do combate e não como adversário na luta, estes últimos colocam-se já, em espírito, no terreno da burguesia: têm assim a batalha meio perdida antes mesmo de a terem começado. Com efeito, toda a ordem estatal é jurídica (a ordem capitalista mais que todas), se baseia, em última análise, no fato de que sua existência e a validade de suas regras não levantem nenhum problema e sejam aceitos como tais.” (História e consciência de classe, 1974, p. 243) Ainda segundo Lukács, a transgressão dessas regras, em casos particulares, não acarreta em qualquer perigo especial para a manutenção do Estado.
Vale uma última palavra sobre a relação entre eleições, programa e confronto social. A experiência da América Latina tem demonstrado que se pode ganhar eleições e promover profundas mudanças no Estado de natureza progressista. Em geral, não chegam a destruir o Estado burguês e construir um Estado democrático de novo tipo. Mas mudam questões fundamentais e, pelo menos nas experiências concretas de Venezuela, Equador e Bolívia, conquistam regimes políticos qualitativamente mais avançados. Concretamente, todos esses países se tornaram independentes do imperialismo. Mas se iludem aqueles que acreditam que essas mudanças se deram pela mera utilização da cédula eleitoral. Não há como explicar o fenômeno do chavismo sem o Caracazo, levante popular que produziu um trauma social, com mais de 4 mil mortos. Desde 1989, as massas populares do país caribenho lutaram para dar o troco nas classes dominantes. A vitória eleitoral de Hugo Chávez foi produto direto desse ascenso sustentado ao longo de uma década. No Equador, ocorreram várias insurreições antes da vitória de Rafael Correa. Na Bolívia, também antes de vencer nas urnas, os camponeses, populares e mineiros venceram nas ruas a repressão do regime burguês. Ou seja, nesses países os processos eleitorais foram fundamentais, mas se combinaram com fortes lutas sociais, com ação direta e confrontos. Todos eles atravessaram situações e crises revolucionárias. Para isso que devem se preparar todos os que almejam reais mudanças também no Brasil.
Qualquer outra perspectiva significa desconhecer a natureza das reações contra as mudanças políticas substanciais. Significa atribuir um caráter pacifista e reformista para a chamada tática do desgaste da II Internacional, estruturalmente muito difícil de ser realizada em nosso país, com pouquíssima tradição de democracia burguesa e, sobretudo, com alto grau de violência social e política, esta promovida pelas classes dominantes. A possibilidade aberta em 1989 foi uma exceção, desdobramento do desconcerto burguês diante da crise da superinflação e do desgaste da Nova República. Uma surpresa para todos. Uma situação similar não pode ser descartada no futuro. Mas trabalhar por essa hipótese, para que de fato seja exitosa, significa trabalhar para que o movimento de massas tenha capacidade de resposta e de ofensiva no terreno da força social, política e militar.
O programa democrático e popular no seu aspecto político terminou assumindo uma posição etapista. Seu grave erro foi desconsiderar duas questões determinantes: a) somente poderosas lutas sociais, confrontos de classe e o poder dos trabalhadores podem realizar um plano de emergência popular; b) a burguesia é opositora radical desse programa. Por isso é preciso preparar-se para os confrontos inevitáveis antes, durante e depois da conquista do poder dos trabalhadores.
Tendo essa questão clara, pode-se atuar aplicando todas as táticas, inclusive hierarquizando a disputa eleitoral presidencial como uma prioridade da política partidária. Tal hierarquia, com a compreensão marxista da relação entre as eleições e a necessidade da força social física das classes trabalhadoras como condição indispensável para a vitória e, sobretudo, para a aplicação de um real programa democrático e anticapitalista, reafirma, e não debilita nem desvia da estratégia central e permanente dos marxistas revolucionários, a defesa da mobilização de massas para construir outro regime político. Um regime de natureza democrática, controlado pela população, cujo poder econômico não domine o político e, portanto, sofra uma forte intervenção pública numa transição de uma economia de mercado para uma economia social, a serviço da maioria da população.
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