Democracia, o novo fantasma dos mercados
Slavoj Žižek analisa: grande novidade na Grécia é chance de uma alternância real de políticas. Por isso, começou o terrorismo midiático
Por Slavoj Žižek, na London Review of Books | Tradução: Vila Vudu, em Outras palavras
“O sujeito que odeia os progressistas em Londres,
apresenta-se como progressista na África”
[Chesterton, 1808, loc. cit. (Nota 1) [NTs].
Imagine uma cena de um filme distópico que mostre nossa sociedade num futuro próximo. Guardas uniformizados patrulham ruas semivazias dos centros das cidades, à caça de imigrantes, criminosos e desocupados. Os que encontram, os guardas espancam. O que parece fantasia de Hollywood já é realidade hoje, na Grécia. Durante a noite, vigilantes uniformizados com as camisas negras do partido neofascista Golden Dawn [Aurora Dourada], de negadores do Holocausto –, que receberam 7% dos votos no segundo turno das eleições gregas e que contam com o apoio, como ouve-se pela cidade, de 50% da polícia de Atenas – patrulham as ruas, espancando todos os imigrantes que cruzem seu caminho: afegãos, paquistaneses, argelinos. É como a Europa defende-se hoje, na primavera de 2012.
O problema de defender a civilização europeia contra a ameaça dos imigrantes é que a ferocidade com que os defensores europeus defendem-se é ameaça muito maior a qualquer “civilização”, que qualquer tipo de invasão de muçulmanos, e ainda que todos os muçulmanos decidissem mudar-se para a Europa. Com defensores como esses, a Europa não precisa de inimigos. Há cem anos, G.K. Chesterton deu forma articulada ao impasse em que se metem os que criticam a religião: “Homens que se põem a combater igrejas em nome da liberdade e da humanidade espantam de si mesmos a liberdade e a humanidade em nome do combate à igreja (…). Os secularistas não provocaram o naufrágio das coisas divinas; só fizeram naufragar coisas seculares… se isso lhes serve de consolo.” [1]
Tantos guerreiros liberais andam tão furiosamente decididos a combater o fundamentalismo anti-democrático, que acabam esquecendo qualquer liberdade e qualquer democracia, tudo em nome de combater o terror. Se os “terroristas” estão dispostos a destruir nosso mundo por amor a outro mundo, nossos guerreiros antiterror prontificam-se a devastar qualquer democracia, por ódio ao próximo muçulmano. Alguns deles amam tanto a dignidade humana que, para defendê-la, dispõem-se a legalizar a tortura… É a inversão do processo pelo qual os fanáticos defensores da religião começaram por atacar a cultura secular contemporânea e acabaram por sacrificar até as próprias credenciais religiosas, na ânsia de erradicar todos os aspectos que odeiam no secularismo.
Mas os defensores que insistem em defender a Grécia contra imigrantes não são o principal perigo: não passam de subproduto do perigo muito maior: as políticas de austeridade que causaram a desgraça da Grécia. As próximas eleições na Grécia estão marcadas para dia 17 de junho. O establishment europeu alerta que são eleições cruciais: não estaria em jogo só o destino da Grécia, mas o destino de toda a Europa. Um resultado – o correto, segundo eles – levará ao processo doloroso mas necessário de recuperação. A alternativa – no caso de vitória do Partido Syriza, de “extrema esquerda” – seria votar pelo caos, pelo fim do mundo (europeu) como o conhecemos.
Os profetas do apocalipse estão corretos, mas não como supõem ou pretendem. Críticos dos arranjos democráticos hoje vigentes reclamam que as eleições não oferecem opção real: votamos para escolher apenas entre uma centro-direita e uma centro-esquerda cujos programas são quase absolutamente idênticos. Mas dia 17 de junho, afinal, haverá escolha significativa: de um lado o establishment (Nova Democracia e Pasok); do outro lado, a Coalizão Syriza. E, como acontece quase sempre em que há escolhas reais no mercado eleitoral, o establishment está em pânico: caos, pobreza e violência eclodirão imediatamente, dizem, se os eleitores escolherem “errado”. A mera possibilidade de vitória da Coalizão Syriza, como se ouve, já dispara convulsões de medo nos mercados. A prosopopéia ideológica é rampante: os mercados falam como se fossem gente, manifestam “preocupação” pelo que acontecerá se as eleições não produzirem governo com mandato para manter o programa de austeridade e reformas estruturais de UE-FMI. Os cidadãos gregos não têm tempo para pensar nas preocupações “dos mercados”: mal conseguem ter tempo para preocupar-se com a sobrevivência diária, numa vida que já alcança graus de miséria que não se viam na Europa há décadas.
Grécia não é exceção. Lá se testa um novo modelo socioeconômico:
uma tecnocracia despolitizada, na qual banqueiros
e outros especialistas ganham carta branca para demolir a democracia
Todas essas são previsões enunciadas para se autocumprirem, causar mais pânico e, assim, forçar as coisas a andarem na direção “prevista”. Se a Coalizão Syriza vencer, o establishment europeu ficará à espera de que nós aprendamos com nossos erros o que acontece quando alguém tenta interromper, por via democrática, o ciclo vicioso de cumplicidade bandida, entre os tecnocratas de Bruxelas e a demagogia suicida do populismo anti-imigrantes.
Foi exatamente o que disse Alexis Tsipras, candidato da Coalizão Syriza, em entrevista recente: que sua prioridade absoluta, no caso de sua coalizão vencer as eleições, será conter o pânico: “Os gregos derrotarão o medo. Não sucumbirão. Não se deixarão chantagear.”
A tarefa da Coalizão Syriza é quase impossível. A coalizão não traz a voz da “loucura” da extrema esquerda, mas a voz do falar racional contra a loucura da ideologia dos mercados. No movimento de prontidão para assumir o governo da Grécia, já derrotaram o medo de governar, tão característico entre a esquerda; já mostraram que não temem fazer a faxina do quadro confuso que herdarão. Terão de mostrar-se capazes de montar e cumprir uma formidável combinação de princípios e pragmatismo; de compromisso democrático e presteza para intervir com firmeza onde seja preciso. Para que tenham uma mínima chance de sucesso, precisarão de toda a solidariedade dos povos europeus; não só de respeito e tratamento decente pelos demais países europeus, mas, também, de ideias mais criativas – como a de um “turismo solidário” nesse verão, que já propuseram.
Em suas Notes towards the Definition of Culture, T.S. Eliot [2] observou que há momentos em que a única escolha é entre a heresia e o não crer – ou seja., quando o único meio para manter viva uma religião é promover uma divisão herética. Essa é, hoje, a posição em que está a Europa. Só uma nova “heresia” – representada hoje pela Coalizão Syriza – pode salvar o que valha a pena do legado europeu: a democracia, a confiança nas pessoas, a solidariedade igualitária etc. A Europa que haverá para nós, se a Coalizão Syriza for descartada, é uma “Europa com valores asiáticos” – os quais, é claro, nada têm a ver com a Ásia, e tem tudo a ver com a tendência do capitalismo contemporâneo, para suspender a democracia.
Eis o paradoxo que mantém o “voto livre” nas sociedades democráticas: cada um é livre para escolher, desde que faça a escolha certa. Por isso, quando se faz a escolha errada (como quando a Irlanda rejeitou a Constituição da União Europeia), a escolha é tratada como erro; e o establishment imediatamente exige que se repita o processo “democrático”, para que o erro seja reparado. Quando George Papandreou, então primeiro-ministro grego, propôs um referendo sobre a proposta de resgate que a eurozona apresentara no final do ano passado, até este foi descartado como falsa escolha.
Há duas principais narrativas na mídia, sobre a crise grega: a narrativa alemã-europeia (os gregos são irresponsáveis, preguiçosos, gastadores, não pagam impostos, etc.; e têm de ser postos sob controle, com aulas de disciplina financeira); e a narrativa grega (nossa soberania nacional está ameaçada pelo tecnologia neoliberal imposta por Bruxelas). Quando se tornou impossível ignorar o suplício do povo grego, emergiu uma terceira narrativa: os gregos estão sendo apresentados hoje como vítimas de desastre humanitário, carentes de ajuda, como se alguma guerra ou catástrofe natural tivesse atingido o país. As três são falsas narrativas, mas a terceira parece ser a mais repugnante. Os gregos não são vítimas passivas. Os gregos estão em guerra contra o establishment econômico europeu. Precisam de solidariedade nessa luta, porque a luta dos gregos é a luta de todos nós.
A Grécia não é exceção. É mais uma, dentre várias pistas de testes de um novo modelo socioeconômico de aplicação quase ilimitada: uma tecnocracia despolitizada, na qual banqueiros e outros especialistas ganham carta branca para demolir a democracia. Ao salvar a Grécia de seus ditos “salvadores”, salvaremos também a Europa.
–
[1] CHESTERTON, Gilbert K., Orthodoxy [1908], “VIII: The Romance of Orthodoxy”, em http://www.leaderu.com/cyber/books/orthodoxy/orthodoxy.html (ing.) [NTs].
[2] ELIOT, T. S. Notas para uma definição de cultura. Lisboa: Século XXI, 1996.
sexta-feira, 1 de junho de 2012
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