O Massacre de Eldorado do Carajá - Relato de Júlia Pereira da Silva
'Não tiro o massacre da cabeça'
[Em Eldorado do Carajás, no Pará, policiais] soltaram bombas e todo mundo saiu correndo Aí senti aquele baque: pá! A bala já tinha entrado no meu pescoço. Fiquei tonta, mas continuei a puxá-lo [o marido] Hoje, quando vejo um policial, me dá ódio. Fica um trauma
Tarso Sarraf/Folhapress - Júlia Pereira da Silva, sobrevivente do massacre, em Belém
Resumo
Júlia Pereira da Silva, 64, levou um tiro no pescoço durante o massacre de Eldorado do Carajás, há 15 anos, e perdeu o marido. Francisco Divino da Silva não está na lista dos 19 sem-terra que morreram na rodovia PA-150, na curva do "S". Morreu meses depois, em Belém, no dia em que seria operado para tratar os ferimentos a bala.
Fiquei viúva sete vezes. Uns morreram de doença, um de acidente de carro, outro brigou na rua. O último marido foi o Francisco, que morreu por causa do massacre. Ele tinha 52 anos, a gente estava junto havia 12 e tinha uma filha adotiva de 9.
A gente morava em Curionópolis, perto de Carajás. Quando o pessoal do MST chegou procurando gente para fazer parte do movimento, fizemos o cadastro. Pagávamos aluguel e queríamos uma terrinha para morar.
Em 1996, fomos para a fazenda Macaxeira. Éramos mais de 5.000 pessoas, e as casas eram barraquinhas cobertas de palha. Eu assistia a todas as reuniões do MST.
Um dia, o movimento decidiu ir para Marabá e depois para Belém, pedir assentamento da fazenda.
Antes do massacre, tive o mesmo sonho três dias seguidos. Eu e meu marido atravessávamos de barco um igarapé. De um lado era água, do outro, só sangue.
Por isso eu disse que não queria viajar. Ele falou que eu precisava ir, porque tinha que me cadastrar para conseguir um pedaço de terra.
Fomos todos caminhando. Foi a primeira manifestação de que participei com o movimento. Chegamos na curva do "S" e montamos barracas. O coronel Pantoja disse que ia mandar ônibus para levar a gente para Belém.
Bombas e facões
Começaram a chegar vários ônibus, até a rodovia ficar toda tomada, para não ter por onde passar. De lá, desceu um monte de policiais. Eles soltaram bombas e todo mundo saiu correndo.
Depois, começaram a atirar para todo lado, só tinha neguinho caindo. Uns quatro sem-terra tentaram ir para cima dos policiais, com facões e pedaços de madeira.
Mandei minha filha correr para o meio do mato. Meu marido tinha ido para longe de mim e, quando vi, ele tinha levado dois tiros.
Eu saí doida, gritando. Ele foi baleado na cabeça e na nuca, rodou e caiu. Na hora em que fui pegá-lo, levei muita pancada de cassetete, mas saí arrastando o Francisco para fora da estrada.
Aí senti aquele baque: pá! A bala já tinha entrado no meu pescoço. Fiquei tonta, mas continuei a puxá-lo para não deixar que acabassem de matá-lo. Pedi socorro, enquanto o sangue escorria.
Saí gritando por minha filha. Ela correu para o mato, com medo, dizendo que não era eu, era minha alma.
Me ajudaram a levar o Francisco para uma casa. Lá, dei banho e lavei a cabeça dele com água morna e sal.
No mesmo dia -fraca, ainda sangrando-, consegui carona para levá-lo ao hospital de Curionópolis. De lá, ele foi para Marabá.
O Francisco ficou internado um tempo, até que o hospital falou que tinha que ir para Belém, não ia ter jeito.
Arranjei dinheiro para pegar ônibus até Belém e deixei minha menina na casa da minha irmã. Vim com meu marido deitado nas minhas pernas, ainda consciente.
Ele foi para a Santa Casa e morreu no dia da operação. Era aniversário dele.
Depois disso, fui operada no pescoço, mas ainda sinto uma dor que fica queimando.
Quando voltei para a cidade, minha filha não estava mais na casa da minha irmã. Minha sobrinha tinha colocado a criança para se prostituir e se juntar com um cara.
A menina ficou com esse homem e depois engravidou. Desde então, já teve oito filhos, de três pais.
Há uns sete meses, fui para Belém, porque nosso advogado pediu a presença dos sobreviventes. Dois dias depois que voltei para a 17 de Abril, que era a fazenda Macaxeira, o namorado da minha filha levou nove vagabundos para a minha casa.
Eles queriam matar um dos meus netos, porque tinham rixa com ele, e falaram: "Vamos levar tudo o que ela tem". Achavam que eu tinha recebido indenização do massacre, mas não.
Nesse dia, resolvi ir para Tucuruí. Lá moram seis filhos meus, de outros casamentos. Vivo com dois netinhos. Recebo pensão de R$ 304 e Bolsa Família de R$ 40 para um neto.
Não tiro o massacre da cabeça. Ele acabou comigo. Eu era bem forte, não magricela assim. Meu marido era muito bom, não faltava nada.
Hoje, quando vejo policial, me dá ódio. Sei que não são todos assim, mas eles me lembram aqueles do massacre. Fica um trauma.
Felipe Luchete, de Belém, Folha
terça-feira, 19 de abril de 2011
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