sábado, 6 de agosto de 2011

A crise da dívida dos EUA
Por Maria Lúcia Fattorelli, em Caros Amigos
“Não é de hoje que estudos, auditorias e investigações denunciam que a dívida pública, ao invés de aportar recursos ao Estado, vem desviando recursos (que deveriam se destinar a áreas sociais) para o pagamento de juros e amortizações de uma dívida cuja contrapartida não se conhece, pois não existe a devida transparência.”

A crise da dívida dos Estados Unidos da América do Norte, maior economia do planeta, escancara a usurpação do instrumento de endividamento público e a sua utilização em benefício do setor financeiro bancário.

Sabemos que o endividamento público é um importante instrumento de financiamento dos Estados, por isso todas as nações são autorizadas a endividar, dentro de certos limites e condições. As dívidas contraídas deveriam aportar recursos aos cofres públicos, complementando os recursos arrecadados por meio de tributos, de forma que o Estado possa cumprir seu papel e garantir vida digna ao seu povo.
Não é de hoje que estudos, auditorias e investigações denunciam que a dívida pública, ao invés de aportar recursos ao Estado, vem desviando recursos (que deveriam se destinar a áreas sociais) para o pagamento de juros e amortizações de uma dívida cuja contrapartida não se conhece, pois não existe a devida transparência.
Assim, o problema central é que o instrumento do endividamento público tem sido utilizado como um sistema de desvio de recursos públicos que, para operar, conta com arcabouço de privilégios e possui diversas ramificações que constituem o que batizamos de “Sistema da Dívida”.
Nos EUA, esse sistema operou, recentemente, para salvar grandes bancos em risco de quebra. Até a semana passada, não se sabia o tamanho dessa ajuda, pois as informações eram vagas e conflitantes, até que no último dia 21 de julho o Senador Bernie Sander publicou o seguinte:
Auditoria inédita realizada pelo Departamento de Contabilidade Governamental norte-americano revelou que US$ 16 trilhões foram secretamente repassados pelo Banco Central dos Estados Unidos – FED, Federal Reserve Bank - para bancos e corporações norte-americanas, bem como para alguns bancos estrangeiros de diversos países.
Os registros de tais repasses haviam sido anotados pelo FED sob a modalidade de empréstimos com juros próximos de zero, realizados no período de dezembro/2007 e junho/2010, que abrange tanto a administração Bush (republicanos) como Obama (democratas).
Assim, volumosa dívida pública foi contabilizada para garantir ajuda aos maiores bancos do país e do exterior. Lista de instituições que receberam a maior parte dos recursos do Federal Reserve está registrada na página 131 do Relatório de Auditoria Governamental, resumida a seguir:
Citigroup: $2.5 trillion ($2,500,000,000,000)
Morgan Stanley: $2.04 trillion ($2,040,000,000,000)
Merrill Lynch: $1.949 trillion ($1,949,000,000,000)
Bank of America: $1.344 trillion ($1,344,000,000,000)
Barclays PLC (United Kingdom): $868 billion ($868,000,000,000)
Bear Sterns: $853 billion ($853,000,000,000)
Goldman Sachs: $814 billion ($814,000,000,000)
Royal Bank of Scotland (UK): $541 billion ($541,000,000,000)
JP Morgan Chase: $391 billion ($391,000,000,000)
Deutsche Bank (Germany): $354 billion ($354,000,000,000)
UBS (Switzerland): $287 billion ($287,000,000,000)
Credit Suisse (Switzerland): $262 billion ($262,000,000,000)
Lehman Brothers: $183 billion ($183,000,000,000)
Bank of Scotland (United Kingdom): $181 billion ($181,000,000,000)
BNP Paribas (France): $175 billion ($175,000,000,000)

Estas cifras estratosféricas evidenciam a utilização do instrumento do endividamento público para fins totalmente diversos do que se poderia considerar justificável, pois enquanto bancos receberam ajuda de US$ 16 trilhões - soma superior ao PIB do país - o peso dessa “dívida pública” tem recaído sobre o povo, provocando desemprego recorde, restrições a serviços de saúde e demais benefícios do seguro social, transformado radicalmente a realidade social naquele país, e para pior.
As revelações dessa auditoria governamental são tão alarmantes que levam à necessidade de aprofundamento das investigações, tendo em vista que o volume de recursos emprestados aos bancos, de US$ 16 trilhões, supera o atual saldo da dívida pública estadunidense, de US$ 14,5 trilhões.
Além desses repasses feitos pelo FED, o Tesouro também destinou grandes somas de recursos aos bancos, tanto sob a forma de repasses diretos como por meio de programas de salvamento bancário que consumiram grande parte da arrecadação tributária do país.
A crise que atinge a maior economia do planeta também provoca conseqüências para o resto do mundo, mas antes de entrar nessa abordagem, cabe questionar porque razão o FED teria repassado tamanho volume de recursos aos maiores bancos do país e do mundo?

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Possivelmente, a cumplicidade do governo norte-americano de não coibir a emissão descontrolada de produtos financeiros que se revelaram verdadeiro “lixo”, seguida de tentativas de empurrar esse lixo para debaixo do tapete com a criação dos chamados “bad banks” - instituições que se prestariam a acatar volumes expressivos desses papéis podres, realizando uma “faxina” para aliviar o sistema financeiro americano  - e talvez até garantias governamentais a certas operações, pesaram em favor da decisão política de salvar os bancos mediante a emissão de trilhões de títulos da dívida, transformando a crise financeira em crise da dívida.  
Adicionalmente, a desregulamentação do mercado financeiro internacional contou com a cumplicidade das principais nações, já que em reunião do G-20 realizada em abril/2009 a proposta de regulamentação do setor não passou. No ano seguinte, o G-20 apenas discutiu a necessidade de regulação mais rigorosa para grandes instituições financeiras, consideradas “grandes demais para quebrar”, admitindo que tal regulação seria uma medida para evitar que novas eventuais falências não tivessem que ser resolvidas pelos governos, aprofundando a dívida pública e colocando economias inteiras em risco.
Portanto, a origem da crise deflagrada desde 2008 nos EUA reside no setor financeiro bancário e sua excessiva “criatividade” na produção de séries e mais séries de derivativos sem lastro e outros produtos financeiros sem respaldo e sem valor algum - chamados de “ativos tóxicos” pela grande mídia.
Derivativos são meras apostas baseadas em outro ativo real. Por exemplo, se determinado conjunto de ações de determinada empresa vale R$ 1.000, faço uma aposta de que aquele conjunto pode valer mais, por exemplo R$ 1.500, e emito um derivativo no valor de R$ 500. Enquanto existem diversas restrições legais e normativas para a colocação de ativos reais no mercado financeiro, a emissão de derivativos não é controlada, o que deu margem para que essas emissões se tornassem um negócio altamente rentável, pois o custo de produção de um derivativo era praticamente nulo.
Como os derivativos são meras apostas especulativas que podem vir a se concretizar ou não, esses papéis deram margem ao surgimento de outros papéis que funcionam como “seguros” para garantir o investidor contra o risco inerente àquelas apostas, também vendidos em larga escala pelos bancos.
Esses papéis inundaram o mercado financeiro mundial e foram repassados a fundos de investimento, fundos de pensão, fundos soberanos e toda espécie de investimentos mundo afora.
Na medida em que as apostas especulativas foram se frustrando, o tremendo volume de seguros começou a ser acionado, levando os bancos a sérios problemas financeiros. Cabe ressaltar que quanto maior e mais famoso o banco, maior a facilidade de colocação de seus derivativos no mercado, e mais amplo o acesso a mercados secundários em todas as partes do mundo, inclusive paraísos fiscais, o que explica a destinação de volumes de recursos mais expressivos para os maiores bancos, conforme lista divulgada pela auditoria governamental.
Apesar da gravidade dessa questão relacionada à origem da crise e ao salvamento dos bancos, as discussões predominantes no parlamento norte-americano nos últimos dias limitaram-se à necessidade de elevar o limite legal para o endividamento - atualmente fixado em US$ 14,3 trilhões - bem como ao corte de gastos sociais para que sobrem mais recursos para o pagamento de compromissos financeiros da dívida.   
Essa crise propiciou acalorados debates e exploração de desgastes políticos inerentes ao período pré-eleitoral estadunidense que até o Secretário de Tesouro Timothy Geithner chamou de “espetáculo”, manifestando sua preocupação de dano à confiança nos Estados Unidos e à cotação dos títulos pelas agências de risco.
Parlamentares debateram também a iminência de uma moratória, o risco de colapso do dólar e de inflação galopante, engenharia financeira, dentre outros problemas estruturais da economia dos EUA, mas o foco da origem da crise – que reside na atuação do setor bancário que inundou o mercado financeiro de papéis sem lastro- não foi devidamente atacado, muito possivelmente em reconhecimento à generosidade do setor financeiro no financiamento de campanhas eleitorais.  
Democratas e republicanos acabaram chegando a um acordo para aprovar, por 74 contra 26 votos, um pacote de “legislação de emergência” que de imediato eleva o limite legal de endividamento em mais US$ 400 bilhões, seguido de mais uma elevação de US$ 500 bilhões, o que permitirá a emissão de mais 900 bilhões de dólares em títulos que cobrirão dívidas anteriores, reduzindo o déficit. Os cortes de gastos sociais serão objeto de cortes drásticos de US$ 2 trilhões em uma década e atingirão principalmente gastos com aposentadorias, assistência médica e subsídios agrícolas.
A solução encontrada é paliativa e o problema real está longe de ser resolvido, pois não está sendo enfrentado: a economia mundial padece da contaminação de imensa quantidade de papéis sem lastro; verdadeiro “lixo” estimado em cerca de 10 vezes o PIB mundial que as nações mais ricas do mundo, principalmente os Estados Unidos, decidiram reciclar mediante a sua troca por dívida pública.
Países da Europa também decidiram salvar os bancos que se encontravam em risco de quebra por terem emitido papéis financeiros sem respaldo, transformando a crise financeira em crise da dívida naquele continente.
Na realidade, o salvamento do sistema bancário e o acobertamento das operações que de fato provocaram a crise financeira nos EUA e Europa estão relacionados à evidente tentativa de transferir os papéis podres para o resto do mundo. O Brasil não está imune de absorver esse lixo, mas as conseqüências da crise da dívida norte-americana vão muito além desse risco.
Devido à aceitação mundial do dólar em transações comerciais e financeiras, diversos países aplicam suas reservas internacionais em títulos da dívida dos EUA. O Brasil é um destes países, tendo acumulado mais de 200 bilhões de dólares em títulos do Tesouro estadunidense nos últimos 6 anos, embora tal aplicação não renda quase nada ao país. O mais grave é que a compra dessas reservas internacionais (que não rendem quase nada) foi feita mediante a emissão de títulos da dívida interna brasileira que pagam os juros mais elevados do mundo. Essa diferença de rendimentos agravada pela forte desvalorização do dólar frente ao real resultou em mega prejuízo ao Banco Central do Brasil, da ordem de R$ 147 bilhões em 2009 e R$ 50 bilhões em 2010, que é arcado pelo Tesouro Nacional, isto é, por toda a sociedade. O endividamento brasileiro já atinge quase R$ 3 trilhões e em 2010 consumiu 44,93% dos recursos do orçamento da União, sacrificando os investimentos em saúde, educação e todas as demais áreas. Desta forma, o povo brasileiro também já está pagando, há algum tempo, a conta da crise da dívida norte-americana.
Outros impactos advirão das medidas aprovadas nesse 2 de agosto de 2011: a demanda norte-americana por produtos de outros países deverá ser fortemente abalada pelas medidas recessivas que estão sendo adotadas para reduzir gastos e fazer sobrar mais recursos para o pagamento da dívida. Além de afetar, em cascata, o comércio de diversos países, tais medidas recessivas provocarão o agravamento da própria crise, inibindo investimentos reais, produtividade e geração de empregos. Por isso outro impacto deverá ser o aumento da pressão para a colocação de produtos norte-americanos em todos os mercados, afetando indústrias locais.
Segundo Michel Chossudovsky, para financiar o salvamento dos bancos o governo dos EUA recorreu a empréstimos junto a esses mesmos bancos. Assim, como num passe de mágica, os bancos falidos foram salvos e ainda transformados em credores do Estado! Por isso, o autor defende a ANULAÇÃO destas dívidas, o retorno dos recursos ao Tesouro dos EUA, e o confisco dos bens dos especuladores, proposta bem distinta da recentemente aprovada no parlamento norte-americano.
A atual crise expôs a dominância do setor financeiro e impõe a necessidade de revisão desse modelo de desenvolvimento e de acumulação capitalista que privilegia o setor bancário. Especialmente nos Estados Unidos, o privilégio de impressão de moeda e emissão de títulos da dívida para financiar investimentos, mas também especulação e guerras, se esgotou.

Notas da autora:
- PIB = Produto Interno Bruto; soma de todas as riquezas produzidas no país no período de 1 ano. O PIB dos EUA é o maior do mundo e equivale atualmente a US$ 14,12 trilhões
- A emissão descontrolada desses papéis “tóxicos” foi possibilitada porque os controles existentes, determinados pela SEC - Securities and Exchange Commission, Estados Unidos da América - órgão criado logo após a crise de 1929 e que desde então exercia o papel de controlar a qualidade e autenticidade dos papéis negociados no mercado financeiro – foram desrespeitados por diversas grandes instituições financeiras (O documentário Inside Job, disponível na internet, ilustra bem esse mecanismo)
- Em inglês: Toxic assets, termo empregado para papéis completamente podres, que não possuem valor algum. Outra denominação é dada para papéis também problemáticos, mas que ainda teriam algum valor; são os chamados Iliquid assets

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida no Brasil desde 2001, foi membro da Comissão para a Auditoria Integral Equatoriana (CAIC) entre 2007 e 2008 e Assessora da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Dívida Pública na Câmara dos Deputados do Brasil entre 2009 e 2010.

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