Madraçais, lixeiras e lamaçais: as distâncias conturbadas entre a ética, a moral e a lei
Ninguém é perfeito. Com o tempo, a gente vai evoluindo cada vez mais, superando e tentando corrigir os erros.
Essa reflexão me assalta, porque me lembrei de que em 1994 eu ainda era militante do PT e membro da Comissão de Cultura do partido. Portanto eu era, naquele ano, um apoiador da candidatura Cristóvam ao governo do DF. Na Comissão de Cultura havíamos estabelecido que, ao tomar posse em janeiro de 1995, Cristóvam realizaria auditoria interna na Fundação Cultural.
Vencemos as eleições. Ao tomar posse o governador Cristóvam se negou a cumprir com o que havia sido estabelecido pela Comissão de Cultura do PT. Cristóvam negou-se a realizar a auditoria. Tampouco quis promover qualquer averiguação interna.
O argumento de Cristóvam era o seguinte: "corremos o risco de não descobrir qualquer irregularidade e, com isso, passar um atestado de idoneidade e honestidade ao Roriz".
Até recentemente, durante os últimos dezessete anos, aquela omissão do governador me intrigou.
No final do mês passado a comunidade brasiliense ficou de queixo caído com uma surpreendente decisão do Tribunal de Contas do DF: a aprovação das contas de Arruda em sua tumultuada gestão à frente do Governo do Distrito Federal. O Ministério Público havia recomendado a rejeição das contas do ex-governador José Roberto Arruda. O tribunal também votou pela aprovação das contas dos ex-governadores Paulo Octavio e Wilson Lima e pela aprovação, com ressalvas, das demonstrações de Rogério Rosso.
Que vergonha para o Ministério Público! Não acerta uma!
Como o povão poderia interpretar esses fenômenos em que a corrupção e a desonestidade correm soltas nos meandros do poder e, depois, os órgãos fiscalizadores atestam que estava tudo bem, tudo na mais perfeita ordem?
O TCDF deu atestados de honestidade e idoneidade a pessoas e grupos do alto escalão que estiveram envolvidas com esquema de propina, durante um governo que esteve sob ameaça de intervenção federal e que passou por três mandatos tampão. O tal ex-governador ao qual o Tribunal de Contas deu diploma de lisura, esteve preso em fevereiro de 2010.
Como compreender essas contradições?
Em novembro de 2010 a Justiça analisou a ação movida pelo Ministério Público contra o ex-reitor da UnB, Timothy Mulholland. Nas acusações eram mencionadas a histórica lixeira de mil reais e as benfeitorias luxuosas do apartamento que passou a ser residência do reitor.
No final do processo, o juiz titular da 21ª Vara da Seção Judiciária do DF, Hamilton de Sá Dantas, julgou improcedente a ação movida pelo Ministério Público Federal, por entender que, embora questionáveis, os gastos realizados não caracterizaram improbidade administrativa.
O magistrado justificou a sentença com uma provocação aos membros do Ministério Público: “Sendo assim, o Ministério Público teria de ajuizar inúmeras ações contra os administradores e membros dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e até mesmo do próprio Ministério Público, que, notoriamente, transitam em carros luxuosos e usam instalações dignas de reis e rainhas”.
Que vergonha para o Ministério Público! Não acerta uma!
A Finatec, Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos, foi protagonista de escândalos investigados pelo Ministério Público do DF e Territórios. Em 2008 a Finatec destinou R$ 470 mil à decoração do apartamento da FUB, no qual o então reitor da UnB passou a residir.
Em 2011 a Finatec, aquela mesma protagonista dos escândalos de 2008, foi recredenciada pelo egrégio Conselho Universitário da UnB, o Consuni. O recredenciamento foi feito por esse órgão colegiado supremo da UnB que a toda hora é qualificado como sendo o grande, representativo e idôneo defensor dos interesses da FUB, e exemplar respeitador das leis e dos princípios éticos.
Como compreender essas contradições?
esta primeira semana de agosto novas acusações são feitas pelo Ministério Público contra a antiga administração da UnB. Agora o ex-reitor Timothy Mulholland é mais uma vez acusado pelo Ministério Público, em nova ação de improbidade administrativa. Imagino que Timothy deva continuar tanquilíssimo, pois que já foi inocentado em inúmeros processos movidos pelo Ministério Público. Se não me engano, a Justiça brasileira já deu uns nove atestados de idoneidade e honestidade ao Timothy.
Que vergonha para o Ministério Público! Não acerta uma!
Só agora entendo a posição que Cristóvam assumiu há dezssete anos, quando se esquivou de fazer uma auditoria na Fundação Cultural. Macaco velho, Cristóvam sabia que a única coisa que a Justiça faz é julgar se as ações são legais ou ilegais. A Justiça não avalia se as ações são morais ou imorais, se são éticas ou antiéticas.
As chamadas "irregularidades" têm sido constantemente denunciadas e julgadas. Ao final os acusados são inocentados. Os administradores que praticam irregularidades são sempre o suficientemente inteligentes para praticá-las dentro da lei.
Infelizmente, conforme avança a luta contra a corrupção e contra a improbidade administrativa, o Ministério Público cada vez mais se desmoraliza, caindo no descrédito, ganhando a pecha de fábrica de denúncias vazias.
O Ministério Público vem pretendendo ser um órgão fiscalizador de costumes morais e éticos. Isso é complicado num Estado Democrático em que normalmente são aceitos grupos sociais que possuem valores diferenciados. O Ministério Público vem tentando provar a verdade real dos fatos, buscando punir pessoas que não aceitam algumas normas e alguns princípios éticos como válidos. Não tem funcionado.
Um país em que os legisladores são esses que aí estão, e em que as leis são essas que aí estão, a impunidade nunca terá fim enquanto Códigos de Ética democraticamente elaborados e Conselhos de Ética democraticamente formados, não existirem em cada unidade da administração pública.
Jorge Antunes é Pesquisador Sênior do Departamento de Música da UnB, maestro, compositor, autor da Sinfonia das Diretas, da Cantata dos Dez Povos, da Ópera Olga e da Ópera de Rua Auto do Pesadelo de Dom Bosco e escreve semanalmente para O MIRACULOSO
Ilustração - Frederico Flósculo
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